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terça-feira, 9 de setembro de 2014

LULA, DILMA, MARINA E A VINGANÇA DE WEBER



 [Igor Suzano Machado]
A disputa pela Presidência da República no Brasil de 2014 parecia fadada à monotonia. Se os acontecimentos de meados do ano passado pareciam pode dar a ela maior agitação, as primeiras pesquisas eleitorais trataram de dissipar essa impressão. Até que, pela pior via possível, embarcada numa tragédia aérea de grande comoção, a incerteza política aportou no pleito presidencial presente, fazendo da emergência da candidatura de Marina Silva a faísca que faltava ao incêndio da disputa.
Difícil saber até que ponto a tragédia em si contribuiu para a grande ascensão de Marina nas intenções de voto. A julgar pelas primeiras sondagens de sua candidatura antes das eleições, provavelmente o que houve foi apenas uma reativação de um capital político já possuído pela candidata. Já se havia perquirido, inclusive, que a candidata era a figura política menos desgastada e mais beneficiada pelas manifestações de junho/julho de 2013. E não custa lembrar que, em momentos de desencanto com a realidade, desde o romantismo à new age, fugas pela espiritualidade e pela natureza são um caminho tradicionalmente percorrido. Logo, não é de todo surpreendente que a figura messiânica da ambientalista evangélica de origem humilde desponte como possível cabedal de uma liderança carismática, capaz de reencantar uma política desacreditada.
A emergência do carisma como forma de reencantamento da política nacional, tem-me remetido a um autor óbvio, quando se pensa neste tema: Max Weber. Um autor que sempre destacou como a vocação científica exigia saber que as descobertas da ciência estavam fadadas à superação, mas cujos ensinamentos, quase um século depois de sua morte, parecem longe de serem superados. Lembro-me de um ilustre professor que, prestes a citar Weber, antecipou a citação dizendo que iria fazer referência a um autor cujas contribuições eram em grande medida importantíssimas, ou, em alguns casos, mesmo definitivas. Parece que, como um bom clássico, Weber, intempestivo, insiste em se fazer presente também na disputa presidencial brasileira de 2014.
Na verdade, sinto que sua presença vem desde as eleições de 2010, quando se fez presente, paradoxalmente, pela sua negação. Como numa peça que se desenrola em vários atos, Weber foi um antagonista relegado a segundo plano no ato de 2010, que parece disposto a emergir mais nitidamente no ato de 2014, talvez para uma vingança imediata, talvez para uma reconciliação, ou talvez para um novo embate que prorrogue a peça até novo ato em 2018.
Lembro-me de duas lições weberianas que me fizeram estranhar a audácia da tática eleitoral do Partido dos Trabalhadores na sucessão presidencial de 2010. A primeira é que, ao contrário da tradição, o carisma não se transfere. E a segunda é que o embate parlamentar é o terreno propício para o florescimento de lideranças políticas, enquanto que a burocracia, com sua lógica de obediência sistemática a ordens de origem outra, aparece como possivelmente o mais estéril dos solos para a emergência de tais lideranças, que possuem como características fundamentais a criatividade e a responsabilidade pelas próprias decisões. Não é necessário lembrar que Dilma representava o oposto disso. Um “poste”, nos dizeres de alguns críticos, alçada do burocratismo à situação de liderança política por um genuíno agente do carisma, que acreditava ter brilho próprio suficiente para contaminar sua escolhida.
Claro que a metodologia weberiana, que utiliza os famosos “tipos ideais” ou “puros”, faz com que, quando Weber fala de políticos e burocratas e formas de dominação baseadas no carisma ou na tradição, ele se refira a personagens idealizados, radicalizando algumas de suas características típicas. Logo, o presente texto também recorre a tais extremos para ressaltar suas diferenças, sem querer ignorar a complexidade dos casos específicos, que não pode ser abordada em detalhe aqui. Ou seja: é lógico que a liderança de Lula não é puro carisma, e que uma militante de anos como Dilma não pode ser considerada exatamente uma burocrata. Ainda assim, acredito que esses traços gerais ajudem a compreender o contexto e identificar os pontos de embate entre aquelas que emergem atualmente como as principais postulantes à Presidência da República no Brasil: Dilma e Marina.
Mas voltando ao pleito de 2010, confesso que eu mesmo, como espectador ludibriado pelos protagonistas do ato, acreditei, principalmente após a vitória de Dilma, que a estratégia de Lula e do PT era correta. Afinal, os embates políticos, na mesma medida que fortalecem um candidato, também podem desgastá-lo, aumentar sua rejeição, etc. Além disso, novas tecnologias de comunicações e pesquisas de sondagem do eleitorado pareciam ser capazes de operar algum nível se não de transferência de carisma, de criação de carisma novo, com base no antigo. Contudo, autores que se sagram como clássicos não o fazem à toa e parece que em 2014 a estratégia cobra seu preço, com Weber espreitando ao fundo. Em contexto econômico e político menos favorável, cobra-se da política seu lado menos pragmático e administrativo: cobra-se dela sua dimensão criativa e de orientação dos espíritos. Enfim, retomando mais um tema caro a Weber, o desencantamento do mundo cobra uma saída. E, como Weber sabia bem, a liderança carismática que, por definição, é completamente arisca à rotinização, é, em termos de dominação política, a única que oferece essa saída.
Com isso, Dilma parece estar em apuros por ter de enfrentar algo que ela não era e não conseguir ser: uma liderança política genuína, como é o caso de Marina Silva. Um embate direto no segundo turno, pode deixar tais diferenças mais nítidas. E talvez seja já o ato da peça em que Weber se vinga de Lula e faz com que a escolhida do ex-presidente sucumba diante da “escolhida por Deus” – como nas mais genuínas lideranças carismáticas – treinada nas trincheiras parlamentares de uma Câmara dos Vereadores, uma Assembleia Legislativa e um Senado Federal.
Mesmo assim, essa não é a exposição por inteiro do quadro político atual, mesmo sob uma perspectiva weberiana. Weber, como todo clássico, também é mais complexo do que isso e sua sociologia dos partidos políticos, reconhecidos como verdadeiras máquinas racionalizadas para a obtenção de cargos públicos, caminha a socorro da atual presidenta. É esse maquinário pautado pela eficiência racional que pode atuar a favor de Dilma, já que ela conta com um suporte partidário muito mais poderoso que sua rival. E, como o primeiro debate entre os presidenciáveis já mostrou, ainda que com alguma dificuldade, também verificada no debate, Dilma pode ser treinada para superar os desafios de campanha que se lhe apresentam. Além disso, mais uma vez tendo como referência o debate da última terça, seja por capacidade própria, seja por capacitação partidária, é possível a um candidato hábil explorar os pontos fracos de Marina, inclusive por meio de uma ética da responsabilidade weberiana, não obstante o apelo que candidata possa ter para aqueles “contra tudo isto que está aí”.
Este seria o caminho de reconciliação com Weber, ou o uso de Weber contra ele mesmo, como antídoto ao seu próprio veneno, possível de ser encontrado na obra de um autor que começava entender como a política possui uma importante dimensão autoimune. Afinal, conformação à jaula de ferro, contra o apelo do potencial transformador, mesmo que possivelmente irresponsável, do carisma, não é exatamente uma postura anti-weberiana, sendo Weber um autor plenamente ciente dessas contradições. Não obstante, essa reconciliação interna a obra de Weber, por via da sociologia dos partidos e de A política como vocação – e não pela via da sociologia da dominação e deParlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída – poderia apenas adiar o embate para outro ato, nas eleições de 2018.
Nesse caso, a vingança de Weber poderia mesmo guardar um elemento sádico. No caso de uma, a meu ver, pouco provável, candidatura de Lula, poderia acontecer de um dos principais articuladores da candidatura anti-weberiana de Dilma ser a vítima direta de uma tentativa de reencantamento da política, para a qual, outrora, o próprio aparecera como agente privilegiado pela ação do carisma. Contudo, num contexto de passados dezesseis anos de governo de seu partido, a rotina e uma conjuntura econômica e política desfavorável poderiam corroer essa aura carismática e fazê-lo sucumbir à emergência de uma nova liderança política em ascensão. Quem sabe a própria Marina, para completar a ironia e o sadismo, ex-ministra de Lula.
Obs.: Este não é um texto a favor ou contra nenhuma das duas principais candidatas à eleição presidencial de 2014, com relação às quais eu teria divergências substantivas em ambos os lados. Não me propus aqui a discutir a substância das propostas das adversárias, única forma de se discutir esta questão. Apenas trouxe à tona algumas categorias de um autor clássico das ciências sociais que acredito serem úteis na compreensão do quadro político atual, já que, a meu ver, permitem avaliar pontos fortes e fracos das duas concorrentes, que não estão completamente subsumidos aos seus programas de governo, apesar de, obviamente, estarem, de alguma forma, relacionados a eles.

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